Savage Nights (2005)
MCO Arte Contemporânea, Porto.
Cristina, 2005. Óleo sobre tela, 55 x 41 cm. Colecção
privada.
Cristina, 2005. Oil on canvas, 55 x 41 cm. Private Collection. |
Nuno e Marcelo, 2005. Óleo sobre tela,
59,5 x 89 cm. Colecção Privada.
Nuno and Marcelo, 2005. Oil on canvas, 59,5 x 89 cm. Private Collection. |
Miau!, 2005. Óleo sobre tela, 55 x 41 cm. Colecção Privada.
Miau!, 2005. Oil on canvas, 55 x 41 cm. Private Collection. |
Dói-dói, 2005. Óleo sobre tela, 21 x 27 cm. Colecção Privada.
Boo-boo, 2005. Oil on canvas, 21 x 27 cm. Private Collection. |
"Noites Bravas"
Por Miguel Carneiro
Eu estive aqui! Assim o Homem assinala a
sua passagem por este mundo. Desde as pré-históricas inscrições com sangue de
boi nas paredes interiores das cavernas mais resguardadas, passando pelos
rabiscos a navalha nos troncos das árvores, à filosofia de algibeira que povoa
os wc´s do mundo civilizado, o ser-humano parece não resistir à tentação de
povoar o espaço visual circundante com a sua marca.
Com
a democratização do acesso à tecnologia, a fotografia amadora, aliada a um
turismo de massas em passo de ginástica, tornou-se assim o expoente máximo e
caricatural desse incontrolável desejo de testemunhar a nossa passagem por
determinado lugar, a conquista de um espaço, afinal prova inequívoca da nossa
existência. Uma acepção que se poderia resumir no chavão “Fotografo, logo existo”!
Nesta relação criada entre o Homem e a fotografia adivinha-se algo de
religioso: a expansão deste médium a uma escala planetária trouxe consigo uma
inesperada dimensão espiritual, já que a atenção dispensada às fotografias
caseiras impressas em tamanho de bolso se aproxima inegavelmente ao culto e
adoração de ícones religiosos que anteriormente amparavam o ser-humano da sua
incontornável efemeridade. Ao mais comum dos mortais tornou-se possível criar,
por vezes com uma displicência obscena, as suas próprias imagens de devoção à
velocidade de um “Click”!
Nuno e Marcelo, Miau!, Cristina, Dói-Dói,,
03h a.m. Bem Bom! Estas são as imagens que Arlindo Silva não consegue
evitar, refracções que lhe vigiam o sono e lhe pisam os calos no autocarro,
pequenas obsessões que tornam a relação com o mundo um pouco menos monótona!
Com a mesma ingenuidade instintiva de um turista frente ao Taj-Mahal, fotografa
incessantemente os seus amigos nas mais variadas ocasiões e assim perpetua a
sua passagem por este(s) lugar(es)! A máquina fotográfica surge assim como uma
prótese tecnológica, o meio mais imediato de quem procura obstinadamente
apreender a realidade.
Arlindo
conhece bem os modelos que pinta, conhece os seus hábitos, os seus
comportamentos, observa-os atentamente enquanto se alimentam em grupo,
conhece-lhes os jeitos, os trejeitos e as faltas-de-jeito, memoriza-lhes as
fisionomias (indispensável para corrigir certas deformações fotográficas),
distingue-os entre a multidão. Devora-os. Através de uma chantagem irrecusável,
tentadora, engorda-os e embebeda-os e assim conquista, com educação, o direito
total para usar e abusar das fotografias que acompanham os serões partilhados.
Esses registos serão o
ponto-de-partida para pinturas que, apesar de muitas vezes consideradas
hiper-realistas no sentido mais rasteiro da expressão, são antes de tudo
transfigurações emotivas das realidades sensíveis que captam. Sem abusar das
possibilidades geradas por esta tecnologia, usa-as apenas como auxiliar da sua
memória visual, aliás profícua, e completa-as com o seu discernimento. Uma espécie
de intuição empírica de quem pertence genuinamente à realidade que se propõe
escrutar.
Aqui
o jogo da representação é sofisticado, a realidade devidamente triturada, e a
presentificação dos ambientes através de uma sedução formal descarada,
assustadora. Sentimo-nos hipnotizados, aprisionados nesta teia virtuosa de aparências.
A procura do real torna-se obsessiva, mesmo caprichosa, desde a mancha de vinho
na braguilha, passando pela cicatriz do apêndice, o cabelo suado, a tez corada
de euforia, até ao chumbo no dente ou a carraça camuflada no dorso do felino,
tudo o que deliberadamente decide ser indispensável para adensar a
singularidade de cada exibição.
Através
de um tratamento exímio das superfícies que reconstrói, e da inevitável deformação
imagética e sensível de quem procura representar o que vê, Arlindo reveste estas aparições de uma verosimilhança
imprevista, uma evocação sincera à medida da realidade que se propõe
documentar. As evidências exteriores tornam-se por isso, paradoxalmente, o
espelho das ocultações interiores, já que tudo o que há para saber encontra-se
dentro dos confins do suporte.
As
personagens dos quadros exibem-se ora em fundos assépticos, depurados de indícios
que contextualizem a acção (permitindo que a tensão do quadro se concentre num
especial jeito dos lábios, no vermelhão dos olhos que denuncia consumos menos
saudáveis, etc…), ora são cativos de composições complexas, instantes decisivos, pausas imprevistas
de acção que reclamam do observador a reconstituição de uma narrativa
interrompida, incompleta.
Ao
contrário dos modelos promovidos pela publicidade invasora e de ideias curtas
com que todos os dias somos bombardeados, rapazes e raparigas desinfectados,
polidos, ostentando dentaduras destartarizadas e abdominais apolíneos,
impolutos, à medida de uma realidade sem defeitos, não há nas figuras
retratadas destes quadros vontade de evidenciar qualquer estilo de vida
exemplar ou conveniente. Estes não são os heróis de um mundo ideal, e por isso
a pose é espontânea, poder-se-ia mesmo dizer tímida. O comportamento dos
intervenientes é, muita das vezes, não-racional, e através de condutas
desafectadas, desavergonhadas, procuram esgotar-se, levar a existência aos seus
limites, restaurando o convívio com a dor, a humilhação ou a desgraça como
partes integrantes da nossa experiência. Errantes, meros vagamundos, a glória
destes personagens reside na sua própria mortalidade.
Evitando
sempre que pode auto-representar-se (como alguém que evita militantemente o seu
reflexo), Arlindo desdobra-se e revê-se invariavelmente em cada um destes
flashes. Através desta catarse, aproveita a circunstância provocada e faz o
luto de cada imagem e, por conseguinte, do tempo de que ela é prova, um alívio
que se torna mais evidente cada vez que encerra uma série: Apartamento 16, Verão Azul,
etc... Cada um desses capítulos sendo, por isso, simultaneamente um falhanço e
um recomeço.
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Revista L+ Artes n.º20, Janeiro 2006
"Sem dúvida um pintor"
Por Sandra Vieira Jurgens
Arlindo Silva é
pintor. É certo que o uso da expressão "pintor" poderá considerar-se
um anacronismo, sobretudo atendendo ao facto de a pintura ter estado durante
longos anos separada da arte contemporânea. Com efeito, na década de 90, o vídeo
e a fotografia obtiveram maior visibilidade e tenderam a monopolizar a cena
artística. Ainda hoje, num momento em que assistimos ao ressurgimento do
interesse pela pintura, o termo poderá considerar-se desajustado por não
corresponder às condições de uma prática pictórica que se quer renovada, dinâmica,
expandida, híbrida, ou seja, em diálogo com outras linguagens mais associadas à
contemporaneidade artística.
Todavia,
reafirmo: Arlindo Silva é um pintor. Começou a expor colectivamente em 2000 e,
desde essa altura, oseu percurso tem sido reconhecido, independentemente do
movimento de "ressurgimento da pintura". O seu trabalho não
corresponde aos gestos mais convencionais da linguagem pictórica nem aos
estilos da pintura in contemporânea, largamente agenciados em catálogos
de exposições, mas também nos vários livros que contribuíram para definir e
legitimar a situação actual deste género artístico. A sua pintura não é
abstracta, nem decorativa, não apresenta superfícies sedutoras, não explora as
relações entre a pintura e as novas tecnologias, o design; nem sequer partilha
as características das principais correntes da nova pintura figurativa, das
abordagens neoconceptuais, neokitsch, neo-bad painting... Concluindo, a
sua obra é independente das modas do momento e da excitação que acompanha a
emergência da novidade mais recente.
Num tempo em
que vivemos fascinados pelo poder da imagem construída e de imagens de superfície,
em que a beleza, a perfeição, a uniformidade regem a cultural visual, Arlindo
Silva produz pinturas com significado, construindo um trabalho baseado na
representação de estados do ser. Na sua mais recente série de pinturas,
"Noites Bravas", apresentada no espaço Piso Zero da Galeria MCO, ele
questiona a cultura do parecer, o processo de normalização dos comportamentos,
estabelecendo um paradigma de actuação que valoriza a naturalidade e a
autenticidade. O seu tema são os que lhe estão próximos, são os amigos, os
momentos biográficos da vida privada, os interiores familiares que revisita
através de imagens conhecidas, construindo quadros vivos. Sendo um observador
atento, transmite-nos uma experiência directa, baseada na relação que mantém
com os modelos, e introduz-nos na realidade, na vida, comunicando um sentimento
de cumplicidade que é o resultado de vivências afectivamente partilhadas entre
o artista e o retratado. Revela comportamentos e gestos de interacção informal
entre pessoas, primeiramente captados pela máquina fotográfica,
transportando-nos para uma zona de contacto social privado. Podemos não
conhecer aquelas pessoas, não testemunhámos as situações vivenciadas, já que
pertencem ao património pessoal de memórias afectivas, todavia o seu registo
vivo vem potenciar o envolvimento e a empáfia do espectador. Entre os seus
"retratos" humanos, não encontramos a representação de figuras históricas
ou populares, com as suas poses oficiais, muito estudadas e cuidadas, tão só
pessoas comuns, nos seus momentos lúdicos, próprios de "noites
bravas", corpos e rostos expressivos, sem compostura. Daí a intensidade da
sua pintura.
Vistas da exposição. MCO Arte Contemporânea, Porto.
Exhibition view. |