A Certain Lack of Coherence, Porto.
The Wrong Guy, 2010. Óleo sobre tela, 51,3 x 68 cm. Colecção Privada. The Wrong Guy, 2010. Oil on canvas, 51,3 x 68 cm. Private Collection. |
Público, Ípsilon, Sexta-feira 30 de Julho 2010.
“Imagem de uma ausência
Arlindo Silva no quarto dos fundos do espaço A Certain Lack of
Coherence, no Porto”
Por Óscar Faria
Arlindo Silva no Coerência
De Arlindo Silva
Porto. A Certain Lack of Coherence. Rua dos Caldeireiros. Até
8/08/2010.
Há cerca
de meio ano, Arlindo Silva (Figueira da Foz, 1974) revelou duas pinturas na
exposição "Mãe" (galeria MCO, Porto). Nessa mostra havia uma figura anunciada:
a da filha do artista, adivinhada no retrato que tomava como ponto de partida
uma fotografia da parturiente antes de dar à luz. Esse trabalho pode evocar —
não só pelo tema, mas também pelo comum azul que projecta o destino de ambas as
mulheres... — uma das obras seminais da história da arte, o fresco da
"Madonna dei Parto", terminado por Piero della Francesca em 1460.
A ausência
dessa imagem, a da figura por vir, podia fazer pensar que a pintura seguinte às
reveladas na última exposição seria a da filha do artista. A melhor tradição
justificaria essa escolha — lembremo-nos, por exemplo, de Gerhard Richter, que
pintou alguns retratos dos seus descendentes (Betty, Moritz e Elia). Contudo,
as circunstâncias ditaram que a seguinte mostra individual de Arlindo Silva
tivesse lugar no A Certain Lack of Coherence,
um espaço independente gerido pelos artistas Mauro Cerqueira e André Sousa, facto
que levou o pintor a optar por uma outra solução.
Convidado
por André Sousa, Arlindo Silva decidiu retribuir o gesto do seu amigo apresentando
nas salas de exposição uma única pintura em que o representa, tomando como
referência uma — fotografia tirada por si — o trabalho do artista é também uma
história de amizades, que formam um retrato de uma comunidade. Essa obra confronta-se
com as condições adversas do lugar, como as variações de humidade e de
temperatura: ela está fora de um ambiente protegido e, como tal, constitui um
desafio para o pintor deixá-la correr o risco de se deteriorar.
Intitulada
"The Wrong Guy", a pintura mostra André Sousa numa pose descontraída:
as mãos desenham na cabeça um gesto que tanto pode ser entendido como a representação
de uns chifres — à memória vem um trejeito semelhante protagonizado pelo antigo
ministro da Economia, Manuel Pinho — ou de umas orelhas — neste caso o envio é
mais para a de um animal, um coelho, por exemplo, que até podia ser o de "Alice
no País das Maravilhas", sempre atrasado para alguma coisa. O rapaz errado
é ainda o próprio pintor, que sente aquele lugar como um desafio, levando, por
isso, a pintura para o quarto dos fundos, obrigando o espectador a aproximar-se
de uma pintura a óleo, hiper-realista, de modo a sentir o detalhe das formas, a
precisão das cores — sobretudo a intensidade do vermelho da “t-shirt” —, o
encantamento da arte. E há ainda a distância entre pose e o olhar de André
Sousa, os quais parecem viver em tempos distintos, uma sugestiva ambiguidade
servida para fascínio do público. Entre a focagem e a desfocagem, a figura
retratada é colocada no limiar de dois mundos: presente diante de nós, ela é
também a imagem de uma ausência, de uma memória — e note-se que o representado
está fora do país, só regressando depois de a exposição encerrar, o que
acrescenta outros níveis de leitura.
É no olhar
que esta pintura se encontra com aquela outra patente em “Mãe”. E é também a
ausência da figura por vir que agora se espera visitada pela luz. Dar corpo a
uma potência: a tarefa da pintura.