MCO Arte Contemporânea, Porto.
À espera de Verónica, 2009. Óleo sobre tela, 50 x 66,5 cm. Colecção privada. Waiting for Verónica, 2009. Oil on canvas, 50 x 66,5 cm. Private Collection. |
Mãe, 2009. Óleo sobre tela, 51,5 x 68,5 cm. Colecção privada. Mother, 2009. Oil on canvas, 51,5 x 68,5 cm. Private Collection. |
Público, Ípsilon, Sexta-feira 15 de Janeiro 2010.
“Dar à luz
Duas pinturas: um arco de mãe a mãe”
Por Óscar Faria
Mãe
De Arlindo Silva
Porto. MCO Arte Contemporânea. R. Duque de Palmela, 141/143.
Até 17/1/2010.
No século
XVII, Rembrandt van Rijn pintou alguns retratos da sua mãe, Neeltgen
Willemsdochter van Zuytbrouck, filha de um padeiro, que chegou também a
servir-lhe de modelo, por exemplo, para a personagem bíblica Ana, numa pintura
onde surge absorvida no estudo do velho testamento. A vontade de fixar para a
posteridade a imagem de um ente querido é um dos assuntos centrais da arte. Recordem-se os retratos de Faium, que vieram a ser descobertos e estudados após 1615, data
da primeira descoberta deste tipo de obras (século I a.C. - século II d.C.) durante
uma peregrinação à Terra Santa organizada pelo nobre italiano Pietro Della
Valle. Feitas ainda em vida, estas pinturas acompanham o corpo do defunto no
seu enterro.
A
exposição ”Mãe” de Arlindo Silva (Figueira da Foz, 1974), confronta o
espectador com duas pinturas de média dimensão: “À espera de Verónica” (50x66,5
cm) e “Mãe” (51,5x68,5 cm). Nos dois casos, o assunto pertence à esfera íntima
do artista: a proximidade do nascimento da primeira filha, fixado a partir de
uma imagem da progenitora captada na cama do hospital, antes do parto; e uma representação
da sua mãe, sentada no interior de uma banheira. São imagens hiper-realistas,
realizadas com recurso a fotografias, o que lhes acentua a dimensão privada, ou
seja, distante de olhares exteriores. Há, de facto, uma dificuldade do olhar em
aceder a esta transmissão de mãe a mãe através das mediações fotográfica e
pictórica, como se, paradoxalmente, a arte se despegasse da vida nesse desejo
de a prolongar para um futuro indefinido — ausente das imagens, a filha é, de facto,
quem acrescenta uma respiração àquele mundo de corpos silenciosos, sem
movimento.
Nesse arco
que vai de mãe a mãe, há uma outra ideia que sobressai: o modo como Arlindo
Silva representa as duas figuras — uma de frente, num instante de espera, de
expectativa, a olhar directamente para a câmara fotográfica, a barriga a
emergir, afirmativa, sob os drapeados de lençóis e da roupa da parturiente, a outra
nua, de costas, sentada numa banheira com água pela metade traduz uma espécie
de campo e contracampo de uma mesma condição, própria do corpo feminino, a de
dar à luz. As pinturas testemunham essa dupla condição de mãe e filha de cada
uma das mulheres representadas: ambos os trabalhos são habitados por um
ambiente aquático; mais tumultuoso, aquele onde se vê a espera do parto, mais
sereno o outro, invadido por uma luz coada — neste caso, a posição da mãe do
artista é fetal, sublinhando esse regresso à origem da vida e, por analogia, à
própria experiência da maternidade celebrada em “À espera de Verónica.”
Ao
realizar esta exposição com apenas duas pinturas, ambas pertencentes a
colecções particulares e tecnicamente irrepreensíveis, Arlindo Silva realiza um
gesto raro e a contrapelo da opção em apresentar um maior número de trabalhos,
escolhida pela maioria dos artistas — há um exemplo que pode ser citado a este propósito,
a mostra realizada pelo italiano Rudolf Stingel na galeria nova-iorquina Paula
Cooper, em 2005, na qual era revelada apenas uma pintura a preto-e-branco na qual
figurava a própria galerista, numa imagem apropriada de uma fotografia tirada
por Robert Mapplethorpe em 1984. Quanto aos modelos pictóricos, eles tanto podem
vir de Rembrandt como de Gerhard Richter (as pinturas dos seus filhos Betty,
Moritz e Elia e da sua mulher, Sabine, realizadas a partir de instantâneos incluídos
no Atlas, arquivo de imagens reunido desde o início dos anos 1960), de Lucien
Freud (o retrato de Kate Moss grávida, pintado em 2002, ou as representações da
mãe, sobretudo as datadas dos anos 1970), ou ainda os nus de Pierre Bonnard.
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"Duas pinturas sobre a vida (e a morte)"
Por Laura Castro
Uma das linhas de desenvolvimento dos
estudos de cultura visual estruturou-se ao evidenciar a presença das mulheres
artistas na história da arte e ao sublinhar o seu contributo para a cultura
artística das respectivas épocas, abrindo um conjunto de perspectivas novas
sobre fenómenos escassamente abordados até às últimas décadas do século XX.
Paralelamente, este enfoque feminista traduziu-se numa série representações da
mulher, de pontos de vista inéditos, inscritos numa matriz, também ela
feminina, que contrariou a óptica masculina, tida como dominante na evolução da
pintura ocidental. Curiosamente, a instauração de uma feminilidade pensada,
conceptualizada e cumprida fora desta órbita masculina, nem sempre teve origem
no trabalho de mulheres artistas, senão que se verificou na produção
proveniente de homens, tornando o problema destas representações e da sua
interpretação mais complexo do que a simples associação do género ao sexo
(feminino ou masculino) poderia dar a entender. Biologia e cultura, realidade e
fantasia, presente e passado têm uma influência muito importante neste campo e
este reconhecimento permitiu ultrapassar as habituais “maternidades” saturadas
de olhares masculinos, estilizadas e de vocação celebrativa, e diversificar
amplamente os temas tratados.
Estas observações foram motivadas pela
visita à exposição de Arlindo Silva na Galeria MCO-Arte Contemporânea, no
Porto, composta por dois trabalhos e intitulada Mãe. De facto, a um primeiro olhar, esta exposição – pelo tema,
pelo modelo de representação e pelas imagens criadas – parecia provar que há um
olhar sobre o feminino que não provém do sujeito de sexo feminino e que a
prática artística não radica obrigatoriamente nesta condição nem é orientada
unicamente em função da diferença que nela se envolve.
No entanto, este pensamento cedo se desfez
perante outras implicações da pintura. Arlindo Silva conciliou a maternidade e
o matricial – o leito de um parto e a água transparente de um banho, lugares
uterinos onde se divisa o familiar, o doméstico, o confortável e, ao mesmo
tempo, o estranho, o desabrigado, o desconfortável, dimensões que se
complementam e que o corpo feminino pode acolher. Numa das obras encena-se o
domínio do pré-identitário, do pré-articulado, das sensações originárias, não
formuladas, ainda em expectativa; na outra, o domínio do pós-identitário, do
mundo plenamente articulado, pós-discursivo. Talvez por isso uma pintura é mais
crua, a outra é atravessada por uma névoa; uma é frontal e aberta, a outra o
seu inverso; uma representa uma jovem, a outra não. Este diálogo circular entre
as duas imagens só é possível porque a exposição se limita às duas peças que,
apresentadas em proximidade, embora sem formar um díptico, contêm outras
oportunidades de leitura.
Mas o mais interessante, e que contribuiu
para alterar aquele primeiro olhar, é o espaço que o pintor ocupa, espaço entre
as duas pinturas, simultaneamente físico e psicológico. O espaço do pintor não
corresponde ao sítio diante do
modelo, diante do motivo, diante do real (embora esse possa também
ser evocado), corresponde ao lugar entre o que ele próprio e os modelos
representam, lugar limiar, íntimo. É um lugar de passagem, de construção, de
geração da subjectividade, habitado pelo eu e pelo outro, sem que a presença do
eu se corporize, apenas pressentida. A condição e o género parecem afinal ter
peso na definição dos caminhos da pintura e na procura do seu significado. Por
isso esta pintura biográfica e auto-biográfica é sobre o eu subjectivo e sobre
a sua procura na triangulação afectiva que propõe.
Esta dimensão cumpre-se também na exposição
no momento em que Arlindo Silva se coloca diante das pinturas para analisar as
circunstâncias em que foram realizadas, as divagações que lhe sugeriram, as
reminiscências, às vezes vagas, que delas ficaram, os recursos formais
utilizados, a fotografia e pintura. O seu espaço materializa-se na galeria, a
sua presença concretiza-se finalmente na sala de exposições e assegura a
possibilidade de um pensamento sobre as obras, ao mesmo tempo que mostra a
diferença entre a temporalidade da pintura e a da teoria. Se o espaço da
galeria já permitia o diálogo atrás referido, agora acrescenta a possibilidade
da crítica e lembra-nos a importância da conjuntura de mediação para o
entendimento da obra. Por outro lado, adiciona ainda aquelas características
hospitalares, brancas e frias, tantas vezes referenciadas, que aqui estabelecem
uma relação imediata com os interiores representados.
As duas obras são imaculadamente pintadas,
no seu realismo virtuoso de matéria e detalhe, no cuidado com a anatomia e o
contexto, na atenção à luz e ao que ela faz aos objectos e à mácula que sobre
eles cai, paradoxalmente. As duas obras são ainda transfigurações porque, para
lá do quotidiano maternal, o adormecimento atravessa-as, o sono paira sobre
elas e o sonho também.
Ao olhar para as duas pinturas não posso
deixar de recordar o gosto simbolista pela representação das idades da vida que
motivaram tantos artistas da passagem do século a criar símbolos da infância,
da juventude e da morte, da inocência e da maturidade, da emergência e do
desvanecimento, em figurações requintadas e de grande decorativismo, cujos
finais se juntavam aos começos, eternos recomeços, em propostas de círculos,
como nestas pinturas. O tempo pode ser o seu protagonista e não posso deixar de
recordar os versos de Albano Martins:
A
vida
–
essa invenção magnífica
da
morte.