Galeria Quadrado Azul, Lisboa.
Vistas da exposição. Galeria Quadrado Azul, Lisboa. |
PÚBLICO, Ípsilon, Sexta-feira, 27 de Junho 2014.
“Porta de entrada para a obra de Arlindo
Silva”
Por José Marmeleira
André e Sara
De Arlindo SilvaLisboa. Galeria Quadrado Azul. Até 28/06/2014.
Recusando a arte como narrativa linear, o
artista apresenta na Galeria Quadrado Azul apenas uma pintura. Que é uma oferta
a Lisboa.
Na exposição que por estes dias termina na Galeria Quadrado
Azul, em Lisboa, só se encontra uma obra. É uma pintura de Arlindo Silva
(Figueira da Foz, 1974), o retrato de um casal, mulher e homem. Alguém lhes
pintou os rostos, e eles sorriem. Vivem os instantes finais de uma refeição,
numa mesa sobram pratos e copos vazios e pressente-se a presença invisível dos
amigos. Chama-se André e Sara, a pintura, e diga-se a quem ainda não adivinhou
que os retratados são Sara & André, a dupla de artistas. Arlindo Silva já
os conhecia há oito anos. Logo no primeiro encontro, a empatia anunciou-se e,
ao fim de outras conversas e de outros acasos, surgiu uma pergunta. “Queriam
saber se eu poderia responder à encomenda de um retrato deles. Estávamos num
restaurante e lembro-me perfeitamente de que no final da conversa lhes disse
uma frase do Maurizio Cattelan, qualquer coisa como: ‘Quando não sabes o que
fazer, sempre podes roubar um trabalho a alguém!’” (risos).
Assumida a recusa, o tempo passou e as coisas ganharam outro
sentido. “Julgo que só mais tarde me apercebi da verdadeira natureza do
projecto e da ideia de colaboração. E quando soube que eles vinham de Lisboa
ver a minha exposição a Guimarães, fiquei sensibilizado. Senti esse gesto mais
intensamente. Combinámos um jantar em minha casa no dia que em viram Coração e
Cinzas [a exposição de Arlindo Silva
no Centro Cultural Vila Flor]. Quando cheguei das aulas [é professor na
Universidade Católica], a minha filha tinha pintado os seus rostos. Comecei
logo com ideias de um duplo retrato pintado.”
Não é bem uma imagem da dupla de artistas o que se pode ver
na Quadrado Azul até amanhã.
Repara-se no título da exposição e da pintura, André e Sara. “Queria muito
retratá-los, mas não enquanto dupla. E virei-os do avesso. Foi a forma de
responder à visita. Levei só uma pintura, porque representa de certa forma a
palavra ‘obrigado’. Era a imagem que tinha para oferecer a Lisboa.”
Passado, presente
e futuro
Recue-se um pouco no tempo, quatro meses, até Coração e
Cinzas. Não faltavam nesta exposição retratos de outros artistas, que nos
situavam num espaço e num tempo determinados: a cena artística do Porto, da década
passada. Reconhecem-se Marco Mendes, Miguel Carneiro. Eduardo Matos, Carla
Filipe. Imagina-se um ambiente de boémia a partir dos “instantâneos”. Há quem
dance, há mascarados, gente que fuma, gente de boca aberta, na galhofa,
espantada. Podemos falar, a propósito desses trabalhos, do retrato de uma geração?
“Sim e não”, responde Arlindo. “Primeiro celebro a amizade, acho que os
artistas vêm por arrastamento. Como a arte de certa forma nos invade, é normal
que se fique com a sensação de que retratei também uma geração artística. As
coisas misturam-se. A verdade é que já retratei algumas pessoas que não
pertencem ao círculo artístico. A minha mãe, a minha filha.”
Não há nenhuma concessão ao voyeurismo do espectador. Os
retratos, os momentos protegem-se com a universalidade das situações e dos
corpos que reclamam a pintura. Se alguns artistas encontram os (seus) materiais
no quotidiano, Arlindo Silva encontra a pintura no quotidiano. Ingres, Corot,
Monet, Hockney, Freud, todos guiados pela sensibilidade do olhar: o grande
arquivo da pintura desvela-se na intimidade do artista, no convívio com os
outros. “Escolhi fazer pintura. A minha pintura não esquece o seu legado,
revisito situações de natureza mais iconográfica e temática abordada ao longo
da História. Mas a pintura não é mais importante do que a música, do que os
filmes, a escultura, a BD, a literatura.”
A música intromete-se nos títulos (com a cumplicidade
involuntária de António Variações, dos MC5, de Iggy Pop) e nas situações
retratadas. Há uma vibração, um júbilo nas personagens que abranda, suavemente,
nos retratos onde se manifesta a presença de uma família. É nesses, porventura,
que o espectador comum mais se reconhece: devolvidos pela pintura, aqueles
corpos, gestos e rostos regressam à vida do espectador. Nada que faça esquecer
a dimensão autobiográfica da pintura de Arlindo Silva. “Quando me sento a
pintar, sinto-me um director. Poder-se-ia dizer que vou dando, empaticamente,
corpo à pintura numa espécie de escrita. Misturo-me nas pinceladas.”
Será dessa mistura que críticos, comissários e outros
artistas desconfiam? Afinal, esta é uma obra que não almeja, nem vislumbra,
consagrações e distinções. Ou deve-se antes falar da resistência de um
preconceito que tem como objecto as ideias de similitude, retrato e imitação
pictórica? Arlindo Silva recorda, com humor, os professores que na faculdade o
tentavam convencer a desistir da pintura. Falharam e, ao mesmo tempo,
conduziram o seu olhar para tantos outros artistas e suportes. Porque falharam?
A resposta é elucidativa: “Algumas pessoas tendem a ver a história de arte como
uma narrativa. Na arte cabem muitas histórias, mas recuso-me a lê-la de forma
linear, como progresso. Creio que algumas coisas vão acontecendo em câmara
lenta e arrastando outras dimensões. É absurdo acreditar que as manifestações
artísticas de hoje não são melhores do que as de ontem e vice-versa. Todas as
formas de arte de certa maneira são passado, presente e futuro porque são
ideias por onde embarcámos. Os meios e alguns materiais podem dizer muito
acerca do tempo em que vivemos, sobre a roupa que vestimos, a música que
ouvimos, os aparelhos que usamos, as formas de comunicação. Mas a essência
escapa à forma.”